Compreendim tarde de mais
que nom era que tu nom fosses vir
Era que eu
nom ia estar
...
“Como dizias que te chamavas?” dixo-me
“Ainda nom dixem o meu nome” respondim-lhe
“E eu ainda nom cho perguntei” respostou-me
...
“Isto é um labirinto de água
e umha prova de que ainda nom todo está perdido”
E pegava num funil
e vertia dentro umha garrafa de litro e meio
de água mineral sem gás
O conteúdo de umha garrafa de litro e meio
de água mineral sem gás
Lá sentado
em cima do mundo
como tantos anos antes ou tantos anos depois
-como sempre-
entendim que finalmente
o que nos afastava e nos unia
era a mesma matéria
Exactamente
o mesmo conjunto de átomos que
artesanalmente alinhados
fazia possível toda aquela potência
que nos rodeia
e toda aquela energia
que nos distancia
“Sim”
respondim
antes de che ouvir a pergunta
“Sim” “Sim” “Sim”
dixem umha e mil vezes
desejoso como estava de que
por umha vez
por umha triste e maldita vez
aquela pergunta fosse dirigida a mim
Tu ainda nom chegaras
e eu já andava a dizer que sim
O que há que fazer é escrever
escuitei
E cheguei a casa e copiei mil vezes no meu caderno
“Nunca mais farei burla dos patriarcas”
Agora que conheces os adjectivos da dor
di-me que substantivo empregarás
para definir o silêncio de umha explosom
Agora que conheces as regras da subordinaçom
e manejas com soltura a retórica
explica-nos que temos que fazer com a verdade
Agora que caducárom todas as metáforas
e estám proibidas as metonímias e as elipses
convencede-nos de que a terra é plana e o sol gira sobre ela
“Pode olhar? É que penso que me entrou qualquer cousa no olho”
Aquela moça
no meio da rua
a abrir com os seus dedos o olho esquerdo até limites desconhecidos
parecia um filme surrealista
Olhei
Decerto entrara-lhe qualquer cousa no olho
Via-se perfeitamente
“Pode tirar-mo”
perguntou ela com toda a amabilidade possível numha situaçom assim
“Nom sei”
dixem
“É muito grande”
“E o que é”
preocupou-se ela
“Toda umha vida”
dixem-lhe
Umha vida
Um mundo
Praticamente um universo inteiro
era o que tinha dentro
Via-se claramente
Expliquei-lhe que eu nom lhe podia tirar tudo aquilo
que era umha mágoa perder tanta maravilha
e que tinha uns olhos preciosos
Mas que o que sim podia fazer
se ela queria
era tirar umha pequena pestana
oculta num recanto daquele universo
Ao cantor dos Prisioners
condenárom-no com catorze anos
a permanecer noventa e nove anos na cadeia
no cárcere
privado da liberdade
Entre os muros da prisom
formou um grupo musical
vocálico
e gravou vários números um
Lá
Na cadeia
A música era umha evasom
e a voz o seu único recurso
a sua única arma
a ferramenta com que golpear
silenciosamente
aquelas paredes
Isto foi há muitos anos
cinqüenta ou sessenta anos antes
da vitória eleitoral do assassino G. W. Bush
cinqüenta ou sessenta anos antes
da derrota eleitoral do sucessor do assassino J. M. Aznar
que nunca serám condenados a noventa e nove anos de cadeia
de cárcere
de privaçom da liberdade
Nom som as vidas as que se cruzam
som as memórias
Hoje os cantores dos Prisioners
nom podem nem estudar música
na prisom
aventureiro
tal vez guerrilheiro
e por isso um dia decidim
marchar à serra
À Serra
de Outes
que eu era um principiante
e nom era questom de começar lançando-se à Sierra Maestra
À Serra de Outes
dixem-lhe ao condutor do autocarro
Tam arriscado fum que aguardei o autocarro na estrada de Nóia
e nom na estaçom dos autocarros
Eu também quereria ser luz
quereria ser metal no fundo do mar
eu também
Ser esse pequeno ruído que nos acorda
essa insignificante onda acústica
que nos fai volver a cabeça
ou aquel momento exacto
onde escolhemos
onde dizemos
onde fazemos aquilo que sabemos
Eu também quereria ser luz
Como essa luz que te ilumina
essa luz que caminha contigo
que tu deixas caminhar contigo
ou que tu nem tam sequer sabes que caminha contigo
Ser esse metal que do fundo do mar
nos fai pensar
ou nos fai sonhar
ou nos fai viajar
ou te ilumina quando apareces andando no extremo de umha rua
ou no recanto de umha praça
E nom esta distáncia
esta terrível sensaçom de estar fora
de nom ser
de nunca jamais fazer parte
Esta obscura negaçom da possibilidade
que se estende vertiginosamente
oferecendo só o caminho da fugida e a derrota
por isso preferia gastar o tempo a sonhar
e imaginar sempre que dormia
A vida é aquela foto tua
que eu nunca tivem
e deixar-se levar polas ruas
sem ir nem vir
Umha das vezes
a voz saiu da torradeira do pam
Já sabedes
esse aparelho que torra o pam
com umhas resistências eléctricas
Ele
como todas as manhás
ia almoçar
e meteu as fatias de pam na torradeira
e carregou no botom
Nesse momento
a torradeira começou a falar
“Nego-me a acreditar nos venenos. Desde a conquista espanhola o meu povo ri idiotamente por umha grande ferida. Quase sempre é de noite...”
Ele gostava do pam no seu ponto justo
No que ele considerava o seu ponto justo
3 minutos
Aos 3 minutos as fatias de pam saltárom
e a torradeira deixou de falar
Ficara os três minutos absorto
a escuitar a torradeira
Sem pensar
pegou em duas novas fatias e meteu-nas na torradeira
Carregou no botom
Novamente falava
“O viageiro encaminha-se através da espiral embora nom
lembra quando e onde penetrou.
Supom que o caminho tem forma de espiral...”
Novamente aos 3 minutos saiu o pam quente
torradinho
tal e como ele gosta
Instintivamente
deu-lhe à rodinha até os 6 minutos
“O pam sairá mais torrado”
pensa
“mas a voz nom parará tam rápido”
Mete as fatias
desejoso de ouvir novamente aquela voz
espectacularmente preciosa
que lhe fala
a ele
Carrega no botom
Passam as horas
A escuitar a voz
e a pensar na sorte de ter mercado
ontem mesmo
dous pacotes de pam de forma
Estava no fundo do rio
e olhava para acima
na procura de um sinal
qualquer
mesmo singelo
que lhe explicasse
que lhe desse sentido
àquela eterna espera
líquida espera
Estava no fundo do rio
pensava ser um peixe
mas os peixes nom
aguardavam
sinal
nengum
nem procuravam um sentido
para aquela vida
submarina
subacuática
subrealista