Centro de Documentación da AELG
O livro das confusons - 1 [Texto íntegro]
Lugris, Igor

Sabiam bem que o seu

-se havia qualquer cousa que pudesse ser nomeada como

o seu-

era na prática

impossível

Nem táctica nem estrategicamente

existia aquilo que ambos os dous reconheciam

instintivamente

como o seu

Ela era eminentemente lírica

e ele obsessivamente prosaico

Ele substantivizava acçons

e ela nom fazia mais que adjectivar sentimentos

Ela na procura incessante de umha cálida sensaçom

e ele sempre a fugir de qualquer indício de doçura

 

Porém

conseguiram

nas escassas ocassions em que coincidiam

no tempo e no espaço

caminhar juntos sem tropeçarem

e mesmo podiam estar vários segundos

e até minutos

diante de uns cafés ou umhas cervejas

sem falar

em silêncio

A evitar cuidadosamente as inecessárias palavras

 

Sabiam bem

que umha mínima parte do outro

era cousa sua

e que a soma de tudo isso

era aquilo que

inexplicavelmente

dotava de conteúdo o seu

-se havia qualquer cousa que pudesse ser nomeada como

o seu-

 


 

Sei que existem multidom de cousas

que nunca jamais serei quem de fazer

Mas sentiria

profundamente

ter vivido sem escalar a face norte da existência

ou sem ter feito o caminho a mao e sem permisso

 

Por isso sempre

nas reunions dos organismos de direcçom

voto a favor de que o universo seja infinito

e de que polas manhás tenhamos água quente

no quarto do hotel

 


 

Doíam-me tanto as costas

depois de seis horas

seis dias seguidos

a arrancar ervas de parterres

pinçando cóleos

e a remover com um pequeno sacho a terra

para que detrás vinhesse alguém

e pudesse plantar umha nova espécie

doíam-me tanto

dizia

que nom reparei

em que quando eu olhava

levantando os olhos da terra

tu nom passavas por diante de mim

 


 

Aquela camareira

que servia cafés donuts e croissants

no balcom da cafetaria da estaçom dos autocarros

de seis a três e de três e meia a oito

escrevia clandestinamente

em fólios cheios de graxa

pequenos versos de amor

que ninguém conhecia

entre cocacola e cocacola

entre sandes de tortilha e copas de conhaque

sabendo que no final do mês continuaria a se igual de inédita

 


 

Eu aguardava por ti

sabendo que nom ias vir

que por algum motivo que eu

jamais

poderia conhecer

tu nom ias vir

Mas eu seguia a aguardar

Desde a primeira hora do dia

sentado ante aquele café com leite frio

até o final do dia

mesmo diante de um outro café com leite frio

que anunciava o começo doutro novo dia

em que eu continuaria a aguardar por ti

 


 

O mais complicado é reconhecer os erros

os fracassos

Reconhecer Aceitar Assumir

Reciclar Reduzir Reutilizar

 

Incorporar

 


 

Farei a minha achega

com umhas quantas letras

já usadas

que servirám para formar umhas palavras

já pronunciadas

E com elas

aparecerám dous ou três versos

nom mais

 

Tudo isso será a minha achega

A minha herança

O que poda constar no meu testamento

Usade-as

se pensades que podem ter utilidade

e se nom

arrumade-as por aí

numha caixinha

num quarto escuro

e deixade-as descansar

 


 

Procurava umha voz

umha ténue sensaçom de companhia

que pronunciará algumhas palavras próximas

reconhecíveis

tranqüilizadoras

Caminhava as ruas

as cidades

os países

e continuava ainda na sua procura

Caminhava

Caminhava

Caminhava

até que descobrim que quanto mais para lá ia

mais me afastava do que procurava

quigem voltar sobre os meus passos

mas o tempo nom queria vir comigo

e cada dia era um mês

e cada mês era umha década

e cada década era um século

e perdim a esperança

Extraviei-me

Perdim o caminho

E um dia já nom soubem

se era um caranguejo a andar para adiante

ou um caracol numha auto-estrada

 

Sentei

E continuo aqui

Sentado

Centos de pessoas passam todos os dias por diante dos meus olhos

mas nom olho para elas

Estou aqui sentado

Na procura de umha voz

de umha ténue sensaçom de companhia

que pronuncie algumhas palavras próximas

 

 


 

Confundim-me

ou enganárom-me

Eu queria solicitar um dos postos de músico

Acordeom

guitarra

ou bateria

Tanto me tinha um como outro

Eu nom tenho nem ideia de música

e penso que só umha vez vim um acordeom a menos de 100 metros

Mas pensei que isso teria possibilidades

Possibilidades de fugir

digo

Estar aí

com o acordeom com a guitarra com a bateria

sem chamar a atençom

e em qualquer momento

zás!

Fugir

Escapar

Evadir-me

isso é

Exactamente isso

Evadir-me

Eu escuitara em algum lado que a vida do músico

polo geral

é daquela maneira

já se sabe

mais relaxada

menos rígida

sem tanta vigiláncia e controlo

e pensei que numha dessas

entre notas partituras e semicolcheias

que eu nom sabia nem o que eram

e continuo sem saber

numha dessas

aproveitava eu

e...

A evasom

A escapada

A fugida

Eu por isso queria solicitar um dos postos de músico

Saber

o que se di saber

de música nom sei grande cousa

Mas nom som parvo

e podia aprender

Também aprendim a manejar a vassoira

a esfregar as janelas do quarto andar

que só abrem para fora e ninguém se atrevia

e a levar a roupa à lavandaria

que som o único de toda a minha secçom

a quem lhe deixam levar a roupa à lavandaria

Também podia aprender algo de música

E por isso fum pedir os papéis para solicitar um posto

Mas confundírom-me

ou enganei-me

e preenchim os papéis para o posto de operário jardineiro

 

E cá estou

sem poder sair destes muros

tam cinzentos

arrancando as ervas más que medram

tam verdes

nos jardins deste centro

tam psiquiátrico

 


 

Pensei escrever no livro de reclamaçons

mas mudei de opiniom

e pugem-me com o de declamaçons

Logo vim que era necessário o de exclamaçons

e que nom estaria mal o de escavaçons

Propugem-me um de situaçons

tam interessante

pensei

como o de perturbaçons

E finalmente

quando já me ia decidir polo de insinuaçons

preferim o de deconstruçons

Até dar com o de confusons

 


 

Estou no mundo porque tem que haver de tudo

repetia a todas as horas

em todas as partes

aquele poeta inédito

licenciado e fanfarrom

que andava na procura das musas

entre as massas

ou das moças

tras os copos de uísque

 


 

Gostaria poder dizer Ourense

como quando digo Lisboa

ou Havana

Gostaria poder dizer Ourense

e lembrar

como quando digo Bilbo

ou Barcelona

as digo Ourense

e penso ainda

e nom lembro

porque sinto que respira

que está viva

umha lembrança de futuro

umha sensaçom de utopia

umha possibilidade de

 


 

Ao longe

o mundo era preto

ou azul escuro

mas umha clara certeza

inundava as perspectivas

 


 

Saber que nunca se poderá recuperar

aquilo que já se perdeu

e se deseja

quer dizer

a nostalgia

Quer dizer

a saudade

Quer dizer

a morrinha

 

Quer dizer

a certeza de que já nom é possível

voltar à infáncia

 


 

Porque viajar no tempo

só é possível para adiante