APENAS UM NOTA
Memórias dun neno labrego, ao ser publicado pela primeira vez em Buenos Aires, no ano de 1961, marca o aparecimento do realismo social na literatura galega. Principalmente na de ficção. Ao mesmo tempo, esta obra serve de leitura crítica da vida e paixão (e destino) de muitos homens da outra banda do Minho. Homens de pátria ocupada desde os remotos tempos dos Reis Católicos e oprimida até aos nossos dias. Oprimida na própria cultura, no uso da própria língua, ciosamente guardada nas palavras do dia a dia dos camponeses e marinheiros, e agora regressada aos corredores das universidades, espalhada ainda em cada canto das fábricas, cuja mão-de-obra procede do agro e da beira-mar - as próprias cidades, não obstante todos os problemas e contradições, começam a ceder ao idioma pátrio. É ver as publicações copiografadas, clandestinas, em que as agressões ao povo galego são compendiadas e combatidas na expressão nacional e não na língua im- posta pelo governo central, instalado no centro da Meseta.
Ora, nós, portugueses, desta banda do rio, tão pescadores de trutas como a gente galega de Tui e de Orense, temos vínculos culturais de muitos séculos com o povo galego: os cancioneiros, coleções de trovas que tanto se cantavam lá como cá. Mas aquilo dos Reis Católicos foi algo avassalador - violentamente. Sucederam-se quatro séculos de silêncio, ou de expressão literária nao significativa. Do século XIV ao século XIX. Depois, no influxo romãntico, aparece o primeiro romance escrito em galego: Marina ou a filla espúria, da autoria de Marcial Valladares (1821-I903), autor também, e de modo compreensível, convenhamos, de um dicionário galego-castelhano e de uma gramática galega! E em meados do século passado processa-se um fenómeno que fica conhecido como o «Ressurgimento». O ressur- gimento da arte literária galega, o sistematizar de umas quantas ideias de pátria e de expressão própria. E na onda inicial três ou quatro poetas ao mesmo tempo líricos e civis: Rosalia de Castro (1837-1885), Eduardo Pondal (1835-1917), Curros Enriquez (1851-1908), o planfetário Lamas Carvajal (1849-1906), etc. E que noticias temos nós, vizinhos de galegos, destes escritores que acabamos de citar? Poucas: de Rosalia, uma breve antologia editada no Porto, em 1954, e, recentemente, versos seus são canções de Adriano Correia de Oliveira; de Curros Enriquez, amigo de Guerra Junqueiro, traduções recíprocas, creio que inéditas em livro, e outras canções do mesmo cantautor; de Lamas Carvajal, uma recente tradução minha do seu saboroso Catecismo do Labrego, apresentado em edição bilingue.
Assim, o Ressurgimento integra na cultura galega do inicio deste século inúmeras revistas culturais no idioma materno, ao mesmo tempo que se sucedem as edições de gramáticas, numa tentativa, que ainda hoje não cessou, de fixar as regras lingüísticas do galego, no arrumar daconstrução do idioma, no seguir a pista das palavras, rebuscadas na voz do povo. Entretanto, também, enraizando-se as ideias e movimentos de autonomia, desde o simples regionalismo até ao internacionalismo de certas organizações revolucionárias dos nossos dias.
Em 1936, com a adversativa da guerra, a Galiza, onde os guerrilheiros anti f ranquistas combateram até muito depois do término do conflito, uma vez mais emudeceu.. Nada de livros - ou apenas duas ou três peças sem significado. Mas, nas vésperas da guerra civil, várias obras já haviam amadurecido, principalmente obras de prosa narrativa: Ramón Otero Pedrayo (1888-1976), Vicente Risco (1883-1963) e um extraordinário homem, cidadão e artista, que foi ministro da república espanhola no exilio, Castelao (1886-I950), que, quando teve de fugir para a América Latina, esteve escondido numa quinta da Beira Alta, aqui em Portugal.
No período 1936-39, como dissemos, nada de assinalável. Após a vitória sangrenta do fascismo espanhol, a opressão. Na opressão, a interdição do ensino do galego nas escolas galegas. Muitos professores foram fuzilados. E recordemos que, no día 18 de Julho, guando estourou a guerra, o estatuto de autonomía da Galiza la ser apresentado aos representantes dos povos congregados sob a designação de Espanha, para aprovação!
Mas temos nomes, nomes: Rafael Dieste, Euxenio Montes, Eduardo Blanco Amor, Alvaro Cunqueiro, Anxel Fole, Marcial Suarez, Xosé María Alvarez Blazquez - alguns destes, simultaneamente, escritores em castelhano; e outros mais novos: Celso Emílio Ferreiro, Gonzalo R. Mourullo, Manuel Maria, Camilo Suarez Llanos, Xohanna Torres, Xosé Luís Mendez Ferrin, Maria Xosé Queizán, Carlos Casares, Emilio Gregorio Fernandez, Lois Dieguez...
Aqui, Xosé Neira Vilas, o autor de Memorias dun neno labrego, surge-nos na geração de Manuel Maria, que será o escritor galego mais conhecido em Portugal. Pois Neira Vilas nasceu numa familia de camponeses na Aldeia de Cruces, em Grés (Pontevedra), a 3 de Fevereiro de 1928. Em 1949 emigrou para Buenos Aires, onde foi operário, padeiro, vendedor de guarda-chuvas e mais esta ou esquela profissão. Simultaneamente, dedicava-se á divulgação da cultura galega, fundando e dinamizando centros, bibliotecas e uma editora.
Enquanto a maioria dos outros escritores galegos alternava os bancos da universidade (Santiago, Madrid) com o redigir dos seus textos - muito inegavelrnente cheios de imaginação e beleza formal - Neira Vilas entregava-se á árdua tarefa de recuperar a cultura galega num importante meio de emigrantes como era e é, apesar da Europa, a América Latina.
A primeira criação literária de Neira Vilas foram doze poemas em galego, que Gervasio Vazquez musicou e levou á cena no Teatro Municipal de Montevideo, na Bolívia. Seguiu-se un livro de poemas: Dende lonxe (1960), com prefácio de Rafael Dieste. Por essa altura, casa con a escritora e jornalista cubana Anisia Miranda , muda-se para Havana, onde hoje vivem, dedi cando-se Neira Vilas ao jornalismo literário.
Memorias dun neno labrego, que agora conta finalmente, com a sua edição portuguesa, abriria a porta para uma vasta obra literária: Xente no rodicio (Vigo, 1965), Camiño bretemoso (Vigo 1967), Historias de emigrantes (Montevideo 1968), A muller de ferro (Vigo, 1969), Inquedo latexar (Monforte de Lemos, 1968), Cartas a Lelo (Corunha, 1971, por assim dizer, uma obra sequente de Memórias), Espantallo amigo (Corunha, 1971, traduzido em catalão, castelhano e ucraniano), O cabaliño de buxo (Corunha, 1971), Remuiño de sombras (Vigo, 1972), Lar (Madrid, 1974), A marela taravela (Lugo, 1974) e Cantarola i os nenos (Madrid, 1975).
Aparecido, como atrás disse, em 1961, numa editora portenha de emigrantes galegos, Memorias dun neno labrego vai na sexta edição em língua pátria. No entanto, pelo seu autor já foi traduzido para a publicação castelhana; por Oleg Ostrovsky para a edição russa, utilizada como trabalho de tese de firn de curso na Escola de Idiomas M. Thorez; por Jan Chen Jau para edição chinesa; e por Miloslav Pluhar para checo. Da tradução rusa há uma edição para as bibliotecas das escolas de idiomas e outra para o público em geral. Entretanto, fragmentos destas Memórias foram incluídos em livros didácticos da universidade de Santiago de Compostela: Gallego 1 e Imagem-lengua española, respectivamente em 1971 e 1972, e na Declaración dos dereitos do neno, em 1973. Em estudos secundários e universitários vários estudos têm sido feitos sobre esta importante obra da cultura galega. No momento desta edição portuguesa, na Itália encontram-se no prelo duas edições: uma para inaugurar uma colecção de ficção e outra para uma colecção destinada às crianças, prefaciada por um pedagogo daquela nacionalidade. Ainda em castelhano, este livro inaugurará uma colecção de autores contemporáneos, da Editorial Arte e Literatura, do Instituto Cubano do Livro. Finalmente, após o recente decreto que em Espanha dispós como legal o encino do galego nas escolas, Memorias dun peno labrego figura como livro de leitura. (Nao há muito falava-se que determinado realizador preparava a planificação desta obra para uma grande-metragem.)
É, tudo isto em torno de uma obra como Memórias - que livro é este? Perguntamos, após, sumariamente, o termos situado num lugar da história da literatura galega. E quem leu versos de Xosé Neira Vilas, sublinhou estes que poderão referir o Balbino da história:
nenos de rir tristeiro
homes que loitam co destino
E perguntarão outros: estamos diante de uma autobiografia? Autobiografia do período da infância? Vejamos: trata-se de um caderno onde um rapazinho foi escrevendo o seu dia a dia, o nascer da sua insurreição ante os plenos poderes estabelecidos por uma sociedade dividida em dois grupos, opressores e oprimidos. A linguagem é simples, linear. É a de um rapaz que, descobrindo, se descobre. Náo se apalpa neste texto um escritor artilhado de preconceitos. Profundo conhecedor da realidade galega, na pele ele sentiu as agruras dessa vivência quando-como o protagonista -entremeava a sua escola com o trabalho no campo, marginal á infância idealizada pelos poetas pequeno-burgueses, para quem cada rapazinho é um rechonchudo anjo da Renascença. E seguiu Neira Vilas o mesmo destino de quase metade dos seus compatriotas: a emigração. Então ainda para a América Latina de fala castelhana, que a Europa da social-democracia veio mais tarde. Chamam-lhe experiência, como num livro de Caldwell; diria eu que estas Memórias constituem uma introdução á militância de qualquer cidadão que se preza. O tema da criança galega e o tema da emigração regressará em outros livros do autor, mas Balbino será sempre Balbino. E o autor terá entendido isto porque, mais tarde, onze anos mais tarde, publicará as suas Cartas a Lelo.
Lelo, o leitor o conhecerá, foi o primeiro amigo e confidente de Balbino, levado da Galiza para o outro lado do Atlântico, para a América, porque o pai de Lelo quis encontrar lá a oportunidade que lhe havia sido negada na terra onde nascera.
Xesus Alonso Montero, crítico literário galego, considera, a propósito deste livro: "na minha opinião, estamos ante a melhor narrativa escrita em galego desde Cousas e Recrincos, de Castelao". História auténtica, Memorias dun neno labrego é a proposta da luta de clases, feita por um rapazinho que ao seu nível assume a missão histórica que responde a um verso interrogativo de Neira Vilas:
Qué foi dos homes de Roi Xordo?
Roi Xordo era um cabecilha de nacionalistas galegos rebelados, há séculos, contra o poder central de Madrid. Pelo menos, é da massa de Balbino que se fazem. E aqui fica esta peça literária e política da cultura galega, para que abra por sua vez o caminho nas nossas editoriais á literatura da Galiza, país vizinho, merecedor da nossa solidariedade, ante a ocupação que sof re e contra a qual se levanta.
Viale Moutinho
Porto, Junho de 1976