O deserto |
e o
deserto foi meu silêncio e no coração da almedina trás das palavras ele procurava a noite. foi uma vez, há muito, quando eras o único caminho até o sangue, o meu sangue. e quem és tu cujo rosto está além das últimas areias do meu deserto? |
w'ess·ah·rá
kánet sukúti wa fi qalb elmedína ba3d· elkalmát howa kán tidáwy ellél kán fíh marra, min zamán, lamma enti konti ett·eríq elwah·íd lig·áya eddamm, eddam bitá3y. we mín enti |
1 Pelo meu sangue correm todos os almuadens e todos os dáteis que foram outrora carícia torpe de silêncio. O nome de Deus veste as minhas pálpebras sem apagar o teu nome, porfias em ser deusa de papel. Hoje tenho dunas mornas na pele e confidências, alguém me liga ao telemóvel, mas não é a tua voz em espiral. Areia como sempre fluíndo nos meus lábios. 2 Rotas até ti que apagou a maré do deserto, tão amarela do meiodia. Apenas beijos húmidos na areia. 3 Consultei o oráculo de Mênfis mas apenas havia dunas e dunas e dunas de ausência. Por aqui só escuto os aturujos das mulheres invisíveis e inapalpáveis, vestidas de noite e com estrelas entre os dedos. Sede de murmúrios que estouram miúdos na minha pele, como orvalho muito muito quente. O sol do deserto desenhou na Esfinge o teu sorriso, triste, sempre triste. 4 Oxalá fosses o Nilo navegável pelo sexo, corrente abaixo sem mar, sem límites, sem fingimentos. 5 Entre as abluções finais de olhos escuros, linhas de cinza. O deserto esta noite será todo amante para acalar todos os silêncios. Um chá de jasmim de lábio em lábio, tendas em que morarão ternuras, tactos sem portagem, porque os dedos escreverão com o último orvalho esse nome que ainda nem pronunciei. Chegas. Existe. 6 O Nilo entre as minhas mãos sussurra sílabas incoerentes. Alexandria. Uma ruela vazia esconde teias em que ainda se marca a tua silueta. O teu perfume inunda o mercado. Danças no ar da melancolia a voar por cima da mesquita. Outra vez és aquele dia de fugida entre as junqueiras, a sombra de todas as ruas sob o silêncios dos veus de todas as mulheres de Alexandria. Só Alá sabe. 7 À alva partiu o caravançarai. Era tudo de imagens, sombras e recordos de roupagens mouras. Tu ias na cabeça e sobre todas e cada uma das bestas daquela caravana. Tu e as tuas imagens silentes espalhando ainda mais a raiva do sol, caminho do suleste, face ao mais fugaz do deserto. Vi-te partir. As sedas da minha tenda vibravam com os passos daqueles camelos tristes, resignados. Fumei o derradeiro cigarro que me ligava a ti e vi o fumo seguir-te. Carne imaginada. 8 Todas as noites olho desde os tapizes a dança do ventre. Crio órbitas invisíveis nos seios e nas cadeiras das dançarinas, beijo o que não pode ser, imagino praias nesses lábios que se mexem com Ommo Kolsom. Laúdes e timbais nevam pela minha saudade, o deserto não és tu, nem eu, sempre errante, a rosa dos ventos. 9 Todas as mulheres que amei foram princessas egípcias, todas coroadas com loureiros de prata agarimosa só para deusas, todas apresentadas ao Nilo em rituais de manancial entre as coxas, todas percorridas pela pelve com ondas de areia doce, todas, em algum momento, férteis a mim. Todas as mulheres que amei foram princessas egípcias. As mulheres que amei nem souberam que eram princessas. E já não tinjo os meus tactos em alfena nem ponho a lua de anel. Todas as mulheres que amei deixaram-me deserto do deserto com a dôr de Íssis nos muros de Béni-Hássan. 10 Nas noites brancas em que os deuses desciam até nós e o deserto punha roupas de cristal oferecia-te aljorjes com meu tacto. Cada um dos teus gemidos subia por entre os remoinhos até a mais íntima pele do deserto. Eu procurava vales, atalhos e oásis na tua pelve, soprava sirocos lentos no teu sexo. Nas noites brancas que vivemos, tive cada vez mais sede de ti. Agora, apenas pó de pó esvara-me das mãos do chão para o céu. 11 Desde a primeira alva até o murmúrio laranja do Cairo na fim do dia, o vendedor serpenteia todo o grande Bazar de el-Khan el-Khalili. Bardiyaat, babii3 bardiyaat ("Papiros, vendo papiros"). Percorre todos os olhos de todas as mulheres. Mulheres de areia, de noite, descendentes da Atlântida, mulheres de seda e pegaminho, de dáteis e de mel proibido, mulheres condenadas a sempre dançarem. Mas as mulheres todas nele só vêm um vendedor de papiros sem sentido, papiros tristes. Ele percorre el-Khan el-Khalili todos os dias pelos olhos de todas mulheres, da alva ao sono. Ele, noutro tempo amante de deusas e de princessas, até ser descuberto por Rá, é a sombra do bazar. Bardiyaat, babii3 bardiyaat. Elas nunca percebem que as ama uma sombra. 12 Antes de partires já eras ida. Vim os teus esteiros à alva fugindo-me, como um mar maldito. Tu ainda dormias em silêncio, fria pela orvalhada e o exílio das minhas mãos. O sol bateu nos meus lábios um adeus nunca pronunciado que talvez seja lágrima de areias. Caminhaste deserto adiante. Flotaste lua invertida. Amaste a tua fragrância. Hoje, no limiar da minha tenda, rim os últimos esteiros, remexem as palmeiras as tuas últimas sílabas. Eu parto também deste lugar, sem tuas mãos e teu cabelo e tua cintura nunca terem existido. 13 E aínda sem estares percebo a magia do teu nome sobre o meu nome, a ternura dos nossos nomes juntos além das últimas dunas, connosco húmidas outrora. Aínda as letras espidas dos nossos nomes parem delícias que chegam até os íbis que as sementam. E tu, onde estiveres nem imaginas que no deserto moram as pegadas do teu ventre. 14 Amanhã, sei-o, o deserto terá a côr duns olhos que nunca vi. Nem sei se serão olhos de pantera ou de séculos, ou se encherão as teias desta tenda ao amanhecer. Amanhã serei rei de todos os reflexos do Nilo, de cada sua curva com forma de cadeiras e de coxas. Será um suspiro em cada gota de orvalho, quente, para partir em rotas de seda pelos seios de uma mulher tam invisível como imprevista. Amanhã erguerão a lápide do meu silêncio, ecoarão cabelos na minha meixela e, por cima de tudo, morarei uma nudez anceiada. Amanhã alguém volta do olvido. 15 Esta manhã, mais do que todas as manhãs bebi-te pó, beijei-te pó, porque pó é a curva das tuas cadeiras, tão formosas cando as benzia entre as minhas mãos. De nada serve amanhecer-te, como uma carícia de orvalho na língua. Bestas de olhos mudos, com tacto azul de navalhas, povoam agora os teus ritmos que uma vez achei de menta. Aqui não moram sereias, menos ainda as de papel como tu. Até dizer-te mulher me dá medo, não te conheço, nem conheço aqueles seios que foram as dunas da minha fantasia. Esta manhã, preguei a Alá não teres existido, nunca, mas sempre me dói esse pó, tantas vezes pedido. 16 Olha, ya habiba, na minha palma: Este deserto foi um homem com lábios milenários e profundos nunca errados. Há senhores de corpos malhados que o quiseram dominar com cães de lua e dentadas de mulher, mas ninguém o soterrou, orgulhoso vestiu os olhos de todos os mistérios, das perguntas todas dos homens até chegar a mim, geração de gerações. Até que tu, cuspindo tua alma, pudeste exiliá-lo. Depois esqueceste chorar, ya habiba. 17 Nas teias, côr de açafrão, com que te dispes em ondas sobre as dunas transcorreram uma vez as Mil e Uma Noites. Hoje, Omar Khayyam diria que os teus lábios sabem a vinagre. 18 És a puta das putas de Paris. És o anceio secreto dos homens todos que te procuram no Quartier Latin deitada num divão de seda, sem ninguém te ter escutado nunca a voz, vendo mas não compreendendo que os teus olhos correm ao Mediterráneo, que na tua pele bate o siroco e suspiras em árabe cando eles alcançam a glória, varrendo as nostalgias que flotam no Sena. És a puta que me levou ao deserto recitando Mahmud Darwish e os poetas do exílio com uvas na língua. Lembro aínda quando te conheci em caravana pelo teu ventre até acampar no teu peito, uma noite de primavera, caminho da tua barbadela capital de Alândalus. Chamei-te mulher mas quiseste ser puta, puta do deserto em Paris. És a puta que descobri antes de seres descoberta, sempre com juncos entre a pele, sol-pôr a sol-pôr, sei que sempre muito atenta. |