Centro de Documentación da AELG
As rulas de Bakunin, fragmento (portugués)
Riveiro Coello, Antón
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I

Já sei que não me posso queixar porque, dentro do possível, sou um ser privilegiado, setenta e seis anos, uma saúde de ferro, uma família com quem vivo em grande harmonia, uma pensão jeitosa, uma cabecinha que ainda funciona e este coitado do Lázaro que tanto anima o último pedaço da minha existência. Apesar de tudo, Rosalía, sinto falta do teu silêncio denso junto à lareira, o nosso casamento de ausências que resolvemos com amor e que, como um estandarte, passeámos pela América. Já sei, sou parvo, mas as lembranças procuram-me com teimosia e remexem no meu estômago. Que me hás-de dizer, minha rola, o tempo apaga os escrúpulos, e até dignifica aqueles amanheceres que tu agitavas com berros doentios para que me despachasse e aparelhasse depressa as vacas, porque o diabo te levasse se não ouvias o carro do Xan de Castro ou do Paco Uzal, que se adiantavam aos galos e deixavam cair pela Gándara o anúncio estridente da sua passagem, um ranger agudo dos eixos das rodas que pareciam as súplicas de um rapaz.

 

Devias ver como ficou a casinha; à nossa filha Branca, que tanto fugia da aldeia, agora deu-lhe para restaurá-la e aproveitou toda a cangalhada que tínhamos (12) arrumada na adega para enfeitar as divisões: o escano de castanheiro, os talhos fumados, a gamela para onde picavas as couves... e muitas coisas mais que já estavam postas de lado pela consolidação da modernidade e que voltaram à cozinha com fungos aristocratas. Limparam a lareira e nas paredes colocaram instrumentos antigos: trasfogueiros, tenazes, foles, tripés, espetos... Só mudaram o caldeiro da gramalheira porque não houve maneira de lhe tirar a negrura ferrugenta. Até aquelas taças azuis, com desenhos filigranados, que os teus nos compraram para toda a vida, rivalizam no aparador com louças de Sargadelos. Tudo adquiriu uma vivência nova, os catres, as cabeceiras de ferro, os alguidares, o fulgor flamejante da madeira envernizada, a pedra puída da fachada...

 

O poço voltou a ter água e na horta já espreitam tomates, cenouras e alfaces como quando vivíamos os dois, com aquela paz doméstica que só se quebrava para discutirmos a precisão da sementeira dos legumes.

 

Agora, passamos aqui todos os verões e muitos fins-de-semana e, se calhar, vamos deixar a Corunha para virmos viver para aqui, porque o Agustín anda a pensar pôr o aquecimento.

 

Por mim, não te preocupes porque me estou a portar bem, melhor do que quando tu estavas e... bem... a Branca está contente comigo, tenho-o ouvido muitas vezes em conversas com as amigas; sento-me na sanita para não mijar fora, faço a cama, ofereço-me para lavar a louça, apesar de agora terem máquina, limpo os sapatos da família todas as noites, dobro a minha roupa cuidadosamente e trato o melhor que posso de Lázaro. O pobre não confia muito na operação de Barcelona. Sei que as possibilidades são muito poucas. Quando vimos para aqui muda de disposição. Tens de pensar que os ruídos da cidade, para ele, são uma ameaça constante.

 

Cinco anos sem ti é muito tempo, Rosalía, cinco anos a sonhar contigo todas as noites com a profana esperança de te ver de novo algures. Por vezes, gosto de pensar que depois da morte há algo mais, não pelo meu egoísmo de começar outra vida, mas pelo facto de poder estar perto de ti. Uma ou outra noite, quando a Lua se enleia nos ramos da figueira do Pardieiro, tenho pensamentos benévolos que quase me levam à oração, mas no final os muros altos da minha consciência depressa detêm esse âmago de religiosidade e envolvo-me na couraça agnóstica de sempre. Tu sabes que não acredito nos curas – seres que insistem que toda a vida é um pecado – nem noutra religião que não seja a das boas pessoas, mas hoje é o aniversário da tua morte e, desta vez, não tenho outro remédio senão ir à missa. A nossa filha nunca mo perdoaria.

 

Não te conto mais nada, Rosalía, pelo que recebe um abraço deste teu velho tunante.

 

Camilo Sabio Dóldan

Celas de Peiro, Verão do ano 1992

 

Acometido por um assomo de nostalgia que lhe humedece o olhar, Camilo deixa cair a sua corpulência cetácea nas costas do sofá e fecha a pasta onde guarda todas as cartas que, nestes últimos anos, tem escrito à sua mulher; uma correspondência que tem escondida como o diário íntimo de um adolescente.

 

A limpeza da manhã desce do Monte Xalo em ondas de luz espumosa e purificadora. Na horta, uma pega rabilonga começa a comer uma reineta que se soltou da macieira e um pintassilgo assobia, escondido nas cerejeiras da

 

Como Lázaro ainda não se levantou, Camilo decide insistir nas chamadas telefónicas. Prime os números com um automatismo burocrático e do outro lado do aparelho, atende uma mulher à qual pergunta, com uma voz molhada pela nostalgia, se por um acaso têm o livro. A mulher, que é a bibliotecária, confirma que o livro efectivamente está registado nos fundos do Ateneu, mas que há uns anos, um tal A.D.B., morador na Rua do Vilar, de Santiago de Compostela, convenceu o director, com trinta mil pesetas, para obter o único exemplar que restava.

 

Camilo anota o endereço completo e sente o desconforto a percorrer-lhe o corpo todo. São muitos, talvez quarenta, os anos que leva à procura desse livro, cobiçando esse tesouro impresso que tanto significado teve na sua vida.

 

O entusiasmo transformou-o num menino que acaba de receber um presente pelo seu aniversário e, durante um bom bocado de tempo, não deixa de dar voltas às datas até que, por fim, marca a viagem a Santiago para a mesma semana em que vão operar Lázaro em Barcelona.