As margens da história e as urdiduras da ficção n’A Casa Velha das Margens
Alva Martínez Teixeiro
De nenhum crime lhe assacavam, senão o da sua vida ter deixado de servir os seus interesses, e que também eram os da Conquista. Mas dessa enorme trama, ele só viria a descobrir as urdiduras muito mais tarde (Santos, 1999: 9).
Esta afirmação, apresentada já no primeiro parágrafo do romance de Arnaldo Santos, constitui o que B. Uspensky denominou a “moldura”: para além de nos oferecer, nas primeiras linhas do texto, indicações cronológicas e topográficas precisas para situar os factos que vão ser narrados, é-nos permitido penetrar e compreender, logo de início, o mundo representado com o seu próprio sistema ideológico e os seus próprios padrões de comportamento.
A narração começa em 1889 quando Emídio Mendonça (o protagonista) de regresso do Reino em viagem para o Dondo sofre um atentado provocado pelos motivos acima referidos, através do qual conhecemos e compreendemos a dinâmica de relacionamentos desta sociedade com base na dissimulação e na falta de escrúpulos. Toda a obra pretende ser um espelho dos ‘ideais’ da conquista e gravita em torno de uma única ideia, concretizada na personagem de Emídio, fio conductor da narrativa e símbolo do drama que a perpassa: a artificialidade da sociedade colonial, obsidiantemente materializada na narrativa por via da mudez e do sigilo, sinais inequívocos da agitação presente à roda do protagonista:
Era um silêncio com várias tonalidades, as vozes às vezes apenas baixavam de tom, as palavras tornavam-se ininteligíveis... (Santos, 1999: 256).
A vida aparece como algo essencialmente em tensão, contraditório, por vezes ainda como decepção e fracasso, principalmente para Emídio, o qual acompanharemos neste seu périplo iniciático às avessas (isto é, na sua readaptação ao mundo que abandonara e o consequente e progressivo apagamento da memória de tudo aquilo que aprendera no Seminário de Coimbra), e que com o seu passeio nos permitirá ir observando de perto a sociedade da altura, na qual nos submerge, assim como nos factos históricos que a rodeiam e condicionam.
No começo, o protagonista vive o seu drama por estar entre duas terras: não pertence e não percebe esse mundo silente. A afirmação “a época praticamente caíra-lhe na cabeça” (Santos, 1999: 16), apresentada páginas depois do esclarecedor início, complementa este à perfeição: a desgraça do protagonista deve-se ao facto de ele estar desprevenido sobre “as coisas da terra” e ir perdendo a “acrisolada inocência” de uma maneira dolorosa, pois a cota pela participação quotidiana nessa sociedade agreste da altura não ficará na pancadaria inicial, de maneira que a integração será sempre áspera.
Estamos portanto perante uma personalização do conflito, já não é só o infortunado e antinatural desta comunidade que se está a cultivar na narrativa, mas também a desventura que esta convivência forçada supõe para um tipo que, como indica Pires Laranjeira (1985: 127), é obsessivo na literatura africana, e que por conseguinte institui um topos: o da cor racial, personificada aqui no pardo protagonista, objecto dos desmandos e afrontas colonialistas (aliás, outro dos leit-motiv mais perturbadores).
O professor Pires Laranjeira aponta ainda para o facto de o negro e o branco serem arquétipos do imaginário colectivo, categorias em oposição no âmbito cultural, social e económico, mas neste romance a divisão não se nos apresenta dualizada: existe uma gradação, uma nova pluralidade graças à aparição de uma outra coloração intermédia no fulcro da narrativa, o pardo, oposto aos outros dois mas ao mesmo tempo oscilante na procura da identidade entre ambos. Emídio convertera-se quase no que Doris Lessing denominou “apóstol del modo de vida de los blancos” (2004: 26) para, conforme a narrativa progride, vermos como de modo gradual ir-se-á identificando com a sua terra.
A atenção transfere-se logo para o problema da integração, do desarraigamento existencial das elites coloniais autóctones que, como assinalava Almílcar Cabral para o período dos combates pela libertação, experimentam habitualmente um “retorno às fontes” (Cabral, 1999: 128).
Emídio decide romper com a sua aculturação graças a um desejo mais ou menos consciente de integração cultural e de “fazer alguma coisa” (Santos, 1999: 331). Destarte, na já referida viagem iniciática desanda o caminho percorrido até Coimbra para progressivamente integrar-se no lugar que lhe corresponde, passando de ignaro estranho a filho das Margens.
Esta conversão parece ser motivada por um sentimento próximo do de Marlow, personagem do romance The heart of the darkness de Conrad, que afirmava:
La conquista de la tierra, que sobre todo consiste en arrebatársela a aquellos que tienen un color distinto de piel o unas narices un poco más chatas que las nuestras, no es una cosa agradable cuando uno las contempla demasiado (Conrad, 2004: 27).
Assim, Emídio parece ser movido no princípio por essa moléstia ou incómodo que lhe provoca a sobrexposição e a conseguinte saturação de injustiças, depois enfeitada com um verniz quase ascético por meio da “Carta de Kijinganu”, documento de um velho vidente ambaquista que confirma a propriedade das terras das Margens para os filhos das mesmas, e que se convertirá em elemento místico que parece operar a transformação no protagonista, erigido agora em adivinho por ser o seu depositário.
O conceito de “fidelidade de classe” resulta aqui anacrónico mas, em sentido lato, paira sobre a narrativa esta noção, por meio do compromisso de Emídio com a “nova fé” e com a sua nova condição. Não se trata de um romance de tese, de um texto raso com a ideologia na superfície do discurso, mas de uma narrativa medularmente nacional, na qual se acomodam, com franqueza e senso crítico, os problemas reais dessa cultura (ou pelo menos alguns deles).
O narrador parece não convir com Stendhal – que afirmava que qualquer intromissão da política nas obras de arte era como um tiro de pistola no meio de um concerto – pois apesar de postular na obra a ausência de qualquer tipo de mensagem directa, afinal esta é introduzida por outras vias mais subtis.
Um dos propósitos atribuídos à novela histórica é o de configurar as nacionalidades emergentes e, nesta linha, a obra é representativa de uma sociedade com a qual se identifica a história do país (em sentido amplo o período de gestação da nacionalidade). Assim, com esta escolha facilita-se não só a abrangência e compreensão da época de que se escreve, mas também a forma em que esse período influi e determina o “presente” no qual se situam o autor e os destinatários do romance, pois o tempo retratado mantém um vínculo ineludível com os grandes problemas de actualidade, veicula, seguindo a denominação de Georg Lukács, a “pré-história do presente”.
Não é este o único motivo pelo qual o romance é evidente e substancialmente nacional, nele não há comunicação aberta, mas, como nas obras de Tchekhov, sem quebrar a naturalidade do retrato, aqui também se deixa transparecer por intermédio das próprias personagens (ou do narrador), com maior ou menor discrição, o ponto de vista do escritor.
Nada se aproxima do que Flaubert chamou impassibilité, pois o escrito é ultrapassado de um modo pouco disfarçado pelo ressentimento contra o poder centralizador. Os brancos são retratados com genuína antipatia através de um discurso avaliativo, cifrado numa série de expressões que traduzem uma atitude apreciativa de natureza marcadamente axiológica, ou mesmo explicitado em afirmações do teor de:
Todos eles brancos do Reino, que muitas vezes faziam dessa condição o seu único argumento de domínio, tinham sido postos em causa (Santos, 1999: 290).
No fundo não esquecem que estão na Conquista, em terra alheia [...] mesmo que agora lhe chamem de província [...] e isso dói-lhes porque se essa é a sua glória, é também o seu grande pecado [...]. E nós, filhos do país, a todo momento lhes estamos a recordar isso (Santos, 1999: 304).
Estas referências (expressas ou veladas) sobre as qualidades morais das personagens afectam de maneira irrefutável o modo como vemos os acontecimentos em que eles se movimentam, e é por isso que, sem necesidade de patentear doutrinas, a relação do leitor com o narrado é manipulada do modo mais despretencioso desde a primeira página: já de início, o castigo em vista estava cruelmente fora de proporção relativamente à transgressão, estabelecendo-se implicitamente um interesse emocional, um forte impulso em direcção à restauração da justiça. É assim que a manobra é feita com simplicidade mas também com habilidade, ficando a valoração implícita e o saldo moral prontos a serem tirados pelo leitor.
O julgamento continua a ser estimulado no decurso da narrativa, ao mesmo tempo que os objectivos a atingir se vão incrementando. Por via dos indivíduos conhecemos os mecanismos sociais, pois o ambiente selvagem e atrasado dos fazendeiros é examinado com muita acuidade, o convertendo muitas vezes a narrativa num desfile de vícios e pecados normalmente ligados à riqueza e à ostentação social: o medo, a mentira, a luxúria, a avareza, a cobiça ou a soberba; isto é, uma escrupulosa pintura da presença geral da corrupção que acompanhou o furor desenvolvimentista da altura.
Deste modo, as experiências e as vivências pessoais do protagonista formam o núcleo de uma reflexão que se foi dilatando através da geografia e da história até construir um painel da sociedade angolana da altura. Neste romance, Arnaldo Santos toma do modo narrativo pitoresco um tipo de descrição minuciosa, atenta aos detalhes quotidianos e típicos para dar essa ‘cor local’, de modo a captar as peculiaridades do passado focando-as, graças ao protagonista, no modo de relação entre as gentes.
Porém, a panorâmica não se esgota ainda, pois como já indicámos, estamos perante um romance histórico, apesar de, por momentos, a narrativa se confundir com uma minuciosa História do país, onde aparecem torrencialmente datas, dados, nomes de comerciantes e fazendeiros...
Nalguns capítulos do romance a narração desfigura-se num denso tecido, contagiado pelo discurso historiográfico ou ensaístico, mais dependente de um modelo teórico e ideológico, com o qual o autor parece pretender complementar a redutora e simplificadora história oficial existente, por via da apresentação de personagens e factos secundários da vida política e cultural desconhecidos do leitor europeu, e a respeito dos quais, portanto, a escassez de informação existente torna impossível comprovar com exactidão os limites estabelecidos pelo autor entre realidade e ficção, pois esta apresentação narrativa só adensa mais as relações criptográficas vinculadas à terra e à cultura.
Por vezes, o excesso deste tipo de ‘documentação histórica’ supõe um desequilíbrio ao pretender unir a fruição estética com a informação, pois, ao contrário do que acontece habitualmente no romance histórico, os dados estatísticos e as informações objectivas não resultam secundarizadas face ao poder evocador das imagens ou às sugestões de uma metáfora.
Mesmo assim, a desarmonia reduz-se a algumas passagens, de um modo geral as referências a factos e figuras históricas são acomodadas no relato, com diversos graus de influência sobre o acontecido, mas o protagonismo e a actividade são assumidos pelos personagens ficcionais, sobretudo por Emídio, claro representante de um dos grupos sociais em conflito.
É assim que, embora por vezes a proporção enfraqueça, ela é sempre recuperada por essa feição do autor para a descrição de costumes que o converte numa espécie de cronista africano da “arraia miúda”. Arnaldo Santos privilegia o protagonismo da população, sobretudo de dois grupos sociais antagónicos e que norteiam o conflito, de tal maneira que o romance está dirigido pelo registo do objectivo e do subjectivo, dos factos reais e das digressões das suas memórias afectivas, pairando num nível muito superior as grandes decisões políticas e os magnos acontecimentos históricos, que nos chegam pelas suas consequências no coro da sociedade angolana visada.
Ao aprofundar as relações sociais, a referência a questões históricas concretas é ultrapassada pelo comparecimento de certos aspectos da natureza humana. O autor beneficia-se da psicologia romanesca para, na linha de Pascal e de Montaigne, desfazer a comédie social: a análise das atitudes sociais convencionais pretende o seu desmascaramento e a sua destruição.
Na sua tarefa de expor processos sociais complicados e próprios da Angola da altura, o autor parece secundarizar um elemento dessa ‘luta de classes’ (se me é permitido o anacronismo): o povo é simples objecto e não sujeito actuante, sendo quase inexistentes os pretos pois não têm sequer a sua cenografia porque realmente quase não são vistos.
Só no fim do romance há uma catártica identificação com as massas populares como reafirmação da identidade, mas de resto é a ausência do ‘gentio’ negro em contraposição com a presença obsidiante do drama do civilizado, inicialmente indiferente à sua própria impiedade, que consegue um efeito paradoxal: revela a inferiorização do outro num duplo sentido, pois ignorá-lo é uma maneira subtil de o ‘denegrir’, que afinal amplifica a percepção da inumanidade das antigas classes ‘dominantes’.
Ademais, com este processo Arnaldo Santos espelha a situação real, preservando a verosimilhança do retrato da época, na qual a esta camada social não lhe correspondia voz, pois era simples força trabalhadora ao serviço do que José Hermano Saraiva denominou “o último projecto de império” (Saraiva, 1989: 336).
O romance insere-nos assim, com rigor ficcional, no período de materialização da empresa idealizada na metrópole a partir da independência do Brasil, que implicou sérios esforços de ocupação para ir penetrando o interior de África (largamente retratados nas diligências dos fazendeiros das Margens) e cujo fim último era criar um Império a partir das afincadas relíquias que eram os territórios portugueses na África.
Evidentemente, uma colónia não era assistida pelo direito a ter história autónoma, pelo qual a história oficial portuguesa é a que perpassa, para além da minuciosa história localista acima referida, as páginas do romance. Mas, como referimos antes, essa história recente é reescrita e perspectivada tendo em conta as consequências directas que esta trouxe para Angola, pois muitas das páginas da historiografia portuguesa referente a este período diziam mais respeito aos territórios colonizados do que ao próprio Portugal.
Como já dissemos, estes acontecimentos históricos integram-se na obra numa rede de outros acontecimentos menores, pois os grandes episódios que fixaram o destino de um império são perspectivados a partir da óptica daqueles outros factos menos memoráveis (muitas vezes ocasionados e circunscritos pelos primeiros) que igualmente determinaram a história do país.
É por isto, pela necessidade de acumular na obra todos os acontecimentos, mas sempre privilegiando o plano mais localista, que a história do imperialismo português é submetida (à diferença da história particular angolana) a um processo de selecção, simplificação e organização, consistindo em reduzir esta perspectiva da historiografia a elementares referências a factos fulcrais, fazendo com que seja possível expor quase um século de história numa página.
Por outro lado, assistimos a um repasso-síntese da história da Conquista, iniciado com a veiculação de algumas noções da história colonial anterior à época em que se situa a acção, como, por exemplo, a ocupação holandesa de Loanda e o perigo que esta supõe na altura para as posições portuguesas; a menção de alguns exploradores lusos e a sua função no país, como Manuel Alves de Castro Francina; ou as referências a aspectos indirectamente ligados à história angolana como a independência do Brasil ou a recuperação ficcional de uma personagem (um governador da Angola oitocentista), o qual permite uma ligação imediata com um dos episódios mais conhecidos da história de Portugal: o regicídio cometido contra D. José, no qual os Marqueses de Távora (descendentes do governador) foram acusados de participar.
Em relação aos factos contemporâneos, estes atingem uma maior repercussão na acção romanesca: através de alusões semeadas no decorrer do romance, vai-se configurando um painel das relações internacionais da época e dos problemas derivados do facto de o projecto português de organização de um império africano ser efectivado no período de pleno desenvolvimento do movimento colonial europeu.
A expansão portuguesa teve de se exercer em dura concorrência primeiro com a Inglaterra e mais tarde com as outras potências interessadas na exploração económica da África. No decorrer do romance temos a possibilidade de acompanhar a evolução deste período crítico para a história do colonialismo português mediante um dos capítulos mais conhecidos desses primeiros confrontos, o conflito mantido com a Inglaterra pelo rio Zaire, considerado, nessa época, chave estratégica cuja posse permitiria o domínio económico de grande parte da África ao Sul do equador, e do qual temos conhecimento através das informações facilitadas a respeito das intrigas e dos estratagemas praticados pelo cônsul inglês em Loanda com o rei do Congo, sempre secundados pelos missionários protestantes.
O desenvolvimento da narrativa converte o leitor em observador privilegiado da mudança das regras de jogo e da cristalização dessas insinuações sobre o possível protectorado inglês em posse legítima através das referências à Conferência de Berlim e às suas consequências: a apresentação do plano do Cabo ao Cairo (que mostrava o interesse que a Inglaterra tinha para criar o seu próprio mapa com um domínio imenso que ia desde o Egipto ao cabo da Boa Esperança, sendo portanto incompatível com o plano português) e, finalmente, o Ultimatum britânico de 1980 que, segundo nos é indicado no romance, sempre atento às consequências mais imediatas da alta política internacional, aumentou a agitação na província, iniciada quando em 1889 a Rodésia saiu do domínio português e foi anexada pelo Governo da Grã-Bretanha.
Outra das questões problemáticas trazida para a narrativa, e derivada igualmente das complicadas e tensas relações com o Império Britânico, é a abolição em 1836 pelo governo português da importação e exportação de escravos nas colónias a sul do equador, impulsada pela repressão da escravatura da Inglaterra, assim como a manutenção da mesma até à lei de 1869, que extinguiu definitivamente a condição de escravo.
Novamente o interesse destas determinações do governo da metrópole é perspectivada desde a colónia, a qual nos demonstra a deliberada e consciente impossibilidade da versão oficial e oficiosa da história, pois, apesar de afirmações como “os escravos não estavam mais a ir para fora do país” (Santos, 1999: 149), assistimos nas páginas do romance à encenação de uma caça de escravos e à desaparição de um quilombo graças ao aparato bélico dos fazendeiros, órgão sustentador do regime escravista e possibilitador das corridas dos novos-colonos nas terras do café.
Na sua condição de província ultramarina, Angola achava-se sob a autoridade de um governador-geral, chefe do executivo e legislativo, apresentado como uma espécie de distante e nebuloso Ubu provinciano, materializado nos seus esforços por controlar as elites autóctones por meio da repressão e da censura e, ao mesmo tempo, também implicitamente presente pela permissória situação, a qual facilitava o poder ou o direito de agir sem coerção ou impedimento (como se pode observar pelas acções paramilitares acima referidas) dos grandes fazendeiros, ou, quando menos, a consecução de certas regalias e imunidades para o resto da população branca, que a finais do séc. XIX superará apenas as 9.000 pessoas.
Este questionamento ou desvendamento dos pregues da História e o privilégio de uma história mais “privada” porque desconhecida, e por vezes quase críptica, que norteia toda a obra e ilumina a obscuridade de certos factos históricos por intermédio de um novo enquadramento, fica brilhantemente sintetizado numa das múltiplas digressões introduzidas pelo narrador a respeito do controverso papel dos proprietários europeus:
Ainda que a história oficial não tenha desvendado essas estórias secretas, e talvez por isso mesmo muito sunguiladas durante a noite nas dixissas, elas não deixaram de alimentar as diversas famas dos homens nas Margens, e nelas a imagem do fazendeiro Freitas do Cazengo ganhara as incontornáveis dimensões que os sunguilamentos emprestam nas coisas e nos homens, e faziam dele o verdadeiro homem da Conquista das Margens (Santos, 1999: 189).
Estamos, portanto, perante uma consciente violação da História, isto é, defrontamo-nos com uma mudança de perspectiva que beneficia a história mais directa e íntima fazendo empalidecer as figuras e os factos históricos tradicionalmente sublimados ou favorecidos pelo discurso historiográfico tradicional, frente ao qual é elevada ao mesmo nível no romance a importância da escrita em Angola.
O contraste é estabelecido com os diversos tipos de escrita: publicações literárias, documentos, livros, títulos de posse..., pela sua grande importância no desenvolvimento do país, sem esquecer pormenorizar e determinar o grau de contribuição subversiva tanto dos textos documentários como dos propriamente literários ou jornalísticos.
A importância dos primeiros é manifesta logo no início pela sua imediatez: os livros e registos privados são indispensáveis para garantir a posse da terra e os direitos dos seus proprietários, para além de tornarem visível as dimensões exactas das injustiças e os latrocínios cometidos pelos colonos contra o povo desapossado do solo. Desta maneira, não é por acaso que o objecto escolhido como elemento mistificador e conversor do protagonista em “filho das Margens” fosse uma carta que confirmava a propriedade das terras para os filhos das mesmas, nem que o ódio dos fazendeiros brancos concitado pelo pai do protagonista explodisse num incêndio que reduz a cinzas livros, documentos e títulos de posse, ou mesmo que o secretário geral recomendasse a extinção dos Livros de mucanos, pois “nesses palpitava a verdadeira história dos povos”, segundo nos esclarece o narrador.
Do mesmo modo, as “coisas literárias” vão ser submetidas ao mesmo interesse silenciador por parte das autoridades e dos colonos, pois são impulsadas pelo mesmo valor revolucionário, e, portanto, entendidas pelo poder como pulsões perigosas, que hão-de ser necessariamente interrompidas.
Estamos a falar, evidentemente, da intensa actividade literária e crítica dos numerosos jornais de Luanda, cifrada tanto em polémicas literárias (como a de Carlos Silva no Arauto Africano), como nas referências a obras, publicações e autores fulcrais no panorama literário como o Almanach de Lembranças ou José da Silva Maia, cuja simples menção permite ao narrador asseverar que “Loanda já tem a sua literatura” (Santos, 1999: 87), com todo o valor que isto comporta em parâmetros de identidade. Mas também nos referimos à actividade agitadora e revolucionária por parte dos “insurrectos” filhos do país, ainda em gestação, e que todavia não ousava verbalizar o questionamento da independência, mas sim negava a acção civilizadora de Portugal.
Porém a ficção não se apoia só nesta intertextualidade derivada das actividades da intelligentsia nacional, mas também amplia os círculos desta happy few alfabetizada e intelectualizada, desenhando o valor identitário de uma outra produção: a oratura, personificada na personagem de Pascoal, que “não apresentara as estórias no género de era uma vez” (Santos, 1999: 104), amoldando-se aos paradigmas europeus, sequelas do colonialismo, senão que, pela primeira vez no romance, dá voz à tradição e ao povo.
Só uma outra ocasião propiciará a cedência da palavra a essa massa preterida: as visões experimentadas pelo protagonista provocadas pelo contacto com a carta e que lhe traziam a presença dos passeantes das Margens, reclamando-lhe responsabilidades e implicação. Na maior parte do tempo, o ambiente do outro mundo está presente na narrativa, pois Emídio fora imaginando, desde que regressara do Reino, aparições, combates com mucongos, visões e outros delírios, simbolizando os maus prenúncios que se anunciavam para os filhos do país, assim como a enorme trama em que todos eles (também os homens que vinham do Reino) estavam predestinados a viver.
Destarte, o narrador indaga nas zonas obscuras do inconsciente do protagonista, nos territórios do sonho, dos pesadelos, do medo, para prenunciar e magnificar o destino incontornável do pardo, mas os fenómenos extraordinários, sobrenaturais, têm um efeito de surpresa muito fugaz sobre o leitor, ao submeter-se à subterrânea proposição do romance.
Apesar de o universo espácio-temporal predispor o leitor a admitir a intervenção do sobrenatural, pois o maravilhoso é aqui uma categoria cultural operativa que forma parte da realidade retratada, a maquinaria sobrenatural aparece regrada e o fantástico torna-se normal: quando o leitor não recebe uma mensagem claramente explicada, quando é convidado a penetrar no labirinto sugestivo do maravilhoso, é potenciada a função interpretativa do narrador, quem se converte no encarregado de desvendar-nos todo o aparato místico-simbólico, oferecendo uma soma de possibilidades de interpretação, como se o autor temesse a perda do sentido prioritário, não deixando nada ao acaso de uma outra possível interpretação.
Deste modo, o profundo messianismo da literatura angolana de que fala Pires Laranjeira, contagia o tecido retórico e ficcional da obra, mas de um modo empobrecedor e redutor, pois aqui o “fatalismo de raíz obscura” referido no romance perde grande parte do seu carácter de mirabilia para ganhar em realismo e verosimilhança ao ser integrado e submetido ao marco histórico localizado e à pretensão de nos oferecer uma lição completa e acabada.
Consistiria esta estratégia numa espécie de primeiro aviso ao leitor inexperiente que toma ingenuamente o romance mais por uma transcrição ficcionada da vida do que por uma interpretação dela.
A segunda das advertências estaria conformada com o “Posfácio circular”, o qual revela-se espaço privilegiado de indicações: o autor tenta tornar clara a natureza do objecto dramático em si, estabelecendo um mundo de normas, chamando a atenção do leitor para o facto de estar apenas a ler uma história que pode revelar os contornos da história social, mas sem esperar-se uma fidelidade histórica rigorosa.
A incorporação deste epílogo na obra consegue um profundo efeito, pois nele a realidade é tingida pela visão literária e a própria história se enriquece, ao misturar-se nele a explicitação do pacto narrativo e um breve comentário sobre o destino de uma das personagens da acção, efeito amplificado ainda pelo facto de não ser o protagonista a personagem seleccionada, mas um dos literatos da obra: Kuxixima, um conhecido poeta louco e desventurado, cujos versos são recolhidos e fixados após o epílogo.
É necessário indicar, todavia, a respeito do posfácio que a salutar ênfase com que nele é negada a convenção e a tradição do romance histórico não consegue alijar a questão genérica, pois estamos a falar de uma obra com figuras-tipo em situações-tipo, não uma sociedade autêntica, nem um retrato fiel da vida colonial, mas do qual não se pode negar que é possível inferir uma pintura histórico-social.
Porém, afinal, a importância do epílogo não reside tanto na colocação de questões metadiscursivas, se estamos perante um romance histórico ou perante uma recuperação transtextual do mesmo para revisitar o passado, como na intencionalidade do mesmo: o autor-narrador é consciente do valor pragmático que possuem determinados elementos do paratexto, como o epílogo, e por isso dirige-se nele directamente ao leitor, ampliando, questionando ou matizando os conteúdos do relato primeiro, suscitando uma nova forma de leitura, através da explicitação da ficcionalidade, a qual estabelece a posteriori uma nova cumplicidade por esse conhecimento do pacto narrativo.
É esclarecida a proposta ao leitor mediante a negação genérica: deve encarar a obra como uma composição de ficção cuja acção se localiza num período concreto do passado nacional, na qual acontecimentos e personagens cuja existência está documentada historicamente são misturados com personagens e acontecimentos inventados, e, através desta revelação, utilizada como factor de credibilidade. Esta predispõe o público a envolver-se uma última vez nessa oscilação e confusão entre a verosimilhança e a verdade à hora de encarar os versos finais do “boémio louco”, os quais são amparados por essa condição ambígua adquirida pelos factos narrados.
Afinal, a obra não se institui dentro do género como um romance rupturista, nem oferece propostas de renovação de largo alcanço, mas significa um avanço decidido na consolidação da narrativa de ficção e uma nova actualização de todas as relações entre romance e história, efectivadas neste caso com uma feição documentária ou até enciclopédica.
Arnaldo Santos constrói um vasto universo ficcional, reflexo panorâmico de uma sociedade, na esteira das grandes colecções de retratos sociais compiladas nas obras de Dickens, Balzac, Proust, Turgueniev ou Steinbeck. Em relação à vida angolana o autor pretende apresentar igualmente a sua concepção da sociedade do século XIX, na qual o dinheiro é considerado tacitamente como a força motriz das acções humanas, como podemos observar a partir das questões políticas, dos mecanismos e do sistema de valores implícito, apresentados pela exuberante galeria de personagens e pela torrencial amálgama de pequenas ocorrências dela derivadas.
Neste sentido, o romance almolda-se à perfeição ao “History tells stories”, formulado por A. C. Danto, mas contando sempre com um único foco irradiador, pois, dum ponto de vista artístico, o povo, contudo, é só o cenário para uma representação principal, desenvolvida num plano diferente, mas ligado directamente à sua vida.
Trata-se da relação do caminho psicológico de um destino singular com o da terra: o percurso do protagonista, personagem duvidosa, contraditória, que se eleva a herói num capítulo para retornar à sua mesquinhez no seguinte, com o seu excessivo refinamento para uma sociedade bem pouco civilizada. Estamos perante o retrato de um homem de sociedade, fino, educado, bem-falante, descojuntando-se na sua terra e transformando-se em caricato.
Até que, finalmente, se opera uma inversão de termos e essa degenerescência torna-se terapêutica e até catártica, produzindo na personagem uma transformação e evolução tão consideráveis como dolorosas. Se por uma parte o seu progressivo empenhamento roça o misticismo e o tom profético-messiánico, noutras ocasiões a descrição do mesmo mais parece aproximar-se de uma tentativa de demonstração do penoso que resulta o engajamento, na linha do que Bretch fizera numa peça que dramatizava a terrível luta entre a passividade e o empenhamento de uma peixeira andaluza contra os generais.
Para Emídio, o mundo é uma série contínua de sofrimentos desconhecidos, como afirmava Guido Piovene, convertindo-se este facto em elemento divisor entre o protagonista portador do conflito e o coro que emoldura a acção, formado por vizinhos e circunstantes.
É através das reminiscências caóticas de Emídio, que revivia para o público a sua constelação familiar, que se definem espaço e tempo num dos planos (passado), mas também à sua volta se configura o presente e se projecta o futuro: por meio do seu destino individual são expressos, de forma imediata, os problemas vitais da época, transfigurando-se o difícil percurso vital do protagonista em diagnóstico ou radiografia crítica do não menos dificultoso panorama nacional sempre condicionado pela “nova profissão de fé da Conquista”, da qual, ao não apresentar o surgimento e a aceitação histórico-social, também não exprime de forma concreta o derrube, limitando-se a uma projecção simbólica e futura do mesmo.
Só resta indicar neste sentido que, embora seja óbvia uma certa espécie de dependência das ideologias e temáticas literárias perante as circunstâncias sociais, não quisemos aplicar atalhos excessivamente rudes ou redutores do material ou do económico para a literatura. Neste caso concreto, a defesa da verdade social, embora como tal não contribua para o valor artístico sim o corrobora, não nos sendo possível perspectivar a obra como produto unicamente das suas particulares circunstâncias, subestimando os aspectos marcadamente literários e o equilíbrio com a vontade estetizante, pois os resultados levariam a desvirtualizar o produto literário e seriam provavelmente tão redutivos como o estudo de J. M. Keynes no qual se atribuía a existência de grandes escritores como Shakespeare ao facto de existir uma atmosfera animada propiciada pela bonança económica.
Pareceu-nos necessário para realizar este breve estudo atender a essa harmonização entre a preocupação pelos aspectos mais pragmáticos e aqueles de teor estético-literário, pois, como afirmou recentemente o poeta palestiniano Mahmud Darwish, numa recente entrevista ao jornal El País: “Es cierto que todo poeta tiene unas circunstancias históricas concretas, pero si es un buen poeta, tiene que ir de lo concreto a lo universal”.
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SARAIVA (1989), José Hermano: História Concisa de Portugal, 13ª ed., Lisboa, Europa-América.
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[Artigo aceptado para a súa publicación en Estudios Portugueses. Revista de Filología Portuguesa (Luso-Española de Ediciones, Salamanca)]